
não vai ser fácil escrever estas palavras. tratam-se de impressões que há muito me ocorrem e que me aparecem com bastante força, suficiente pra me fazer escrever isto pra ti. escrevo por acreditar que também escrevemos o futuro, escrevo por necessidade.
desde que decidi sair do brasil (numa viagem íntima de emancipação e em busca de ampliar a minha leitura do mundo), venho inevitavelmente vivendo memórias e impressões do recife de maneira atávica, quase que avassaladora. de tal modo que, nestes dias de distância, sempre procurei manter-me informado e atento à história atual desta cidade, que também é a minha história.
assim, observo o intenso sufocamento e a assustadora violência a que o recife vem vivendo, em crescimento até agora incontrolável. percebo esta situação, mesmo que a partir de uma posição bastante privilegiada, comparando-se à maior parte da população. vejo a miséria tomar as mais diversas formas, atingindo a tudo e a todos com golpes de terror. a expressão “qualidade de vida”, em recife, possui um sentido próprio, mórbido e doentio. toda esta violência, este trânsito, a corrupção e a inconsequente construção vertical parecem sem limites. a desigualdade social é o coração desta febre e cresce a todo vapor, sendo causa e consequência deste agora tão escuro.
assisto ao êxodo acelerado da minha geração com um misto de perplexidade e compreensão (entendo-o bem pois também faço parte deste movimento). assusto me ainda mais com o sentimento de aceitação e normalidade quase que generalizado, por parte da sociedade recifense diante do caos que toma conta da cidade. o que percebo é cansaço, cinismo e medo, muito medo de encarar esta realidade com frontalidade e o desejo de transformação necessários.
da onde vem este sentimento derrotista? a quem interessa este silêncio?
fico pensando que a minha geração envelheceu rápido demais, ou talvez “aprendeu” a emudecer, “porque assim é mais seguro”… ou, quem sabe até, estejamos todos atordoados, sem saber como e por onde agir. entretanto, pelo que vejo, nunca desapareceu a capacidade incansável para organizar festas e eventos sociais - rituais onde a qualquer custo o objetivo é se embriagar e dar uma foda mais ou menos rápida, lugares onde se celebra o que ainda nos resta de vida, espaços utópicos onde ainda se pode dançar e beijar “sem medo”, mesmo que seja assim, de forma fugaz - vejo que ainda resta algum potencial de mobilização. sei que é importante brincar e conheço intimamente esta busca pelo outro e por afeto, não há nada de errado em festejar, afinal: a dimensão da alegria habita na dimensão da curiosidade, e a dimensão da curiosidade é própria da transformação…
portanto sei, e sabemos todos, que não precisamos de heróis e que nossos inimigos, somos nós mesmos. e se, mais do que nunca, a defesa dos ideais, e qualquer engajamento político, soa antiquado ou desacreditado, como podemos reinventar caminhos por um mundo mais justo, mais condizente com os nossos desejos? para começar, parece-me evidente que, a cada instante, devemos fazer escolhas em direção à ética, reconstruindo assim os sentidos desta palavra e o terreno para uma vida mais fraterna, o que a todos interessa, não?
sem rebeldia, tudo permanence como sempre foi, e se nosso momento na história é diferente de qualquer outro, devemos buscar nossas próprias formas de criá-la, como nós a desejamos. lembro-me dos ensinamentos do Paulo Freire, ao dizer que “interessa o saber da história como possibilidade e não como determinação, pois não sou apenas objeto da história mas seu sujeito igualmente” ou ainda “ o mundo não é o mundo, está sendo”. A história é agora.
e sabendo que não é possível fazer história sem os pés bem assentados na consciência crítica, é também evidente que não posso perpetuar toda a devastação à minha volta. minhas ações são decisivas, sejam elas mais ou menos simples. com humildade e alegria, percebo que eu sou o meu projeto de mundo.
aonde quer que estejamos, em qualquer situação, podemos fazer a diferença abrindo espaços de invenção permanente. sempre penso em levar pra recife um pouco do que venho aprendendo, e como sei que cada um de nós têm desenvolvido formas diferentes de intervir no mundo, acho que é hora de juntarmos nossos esforços e nossas visões em um encontro por celebração e transformação. como criar nossos meios de comunicação? como intervir no seio da sociedade recifense em busca de debate? como apresentar outras alternativas de vida? como fazer tudo por um pouco mais de ternura ?
estas palavras são minhas, gostaria de saber quais são as tuas. no fundo somos mais livres do que imaginamos. estou longe, sinto saudades e desejo agir. é pouco, eu sei, ainda há muito pra se fazer, isto não é nada mal, terrível seria se não tivessemos mais nada a criar.
com afeto